A dimensão transnacional da escultura de Brecheret
No momento do aniversário de 120 anos do nascimento de Victor Brecheret é emblemático o fato que se mostrem obras que estiveram longe do olhar do público colecionador, algumas inéditas e outras pouco vistas.
De fato, o núcleo Victor Brecheret na coletiva Mercado de Arte se constitui em precioso conjunto de obras de um dos mais importantes escultores da Arte Moderna Ocidental. Victor Brecheret e sua arte ultrapassam os limites do Modernismo Brasileiro e ocupam uma posição de destaque no cenário mundial das artes da primeira metade do século XX. Convém lembrar os prêmios nos salões de Paris – Salão de Maio e Salão dos Artistas Independentes –, somados à admiração que lhe dedicavam Bourdelle, Picasso e Léger, entre outros. O ápice de sua trajetória de sucesso em Paris, então centro mundial das artes, foi em 1934. Neste ano foi o primeiro artista do Brasil a receber a mais alta condecoração do governo francês, como Cavaleiro da Ordem Nacional da Legião de Honra da França. Junto com a concessão do título, o governo adquiriu sua obra, “Le Groupe” (O Grupo), granito de 1933-1934, colocando-a no Museu do Jeu de Paume, que reunia as obras dos artistas contemporâneos mais destacados nos salões.
O conjunto das cinco obras selecionadas para a exposição coletiva percorrem quatro décadas do itinerário da carreira de sucesso de Victor Brecheret e merecem cada uma comentários que contextualizem o momento de criatividade e sensibilidade de sua produção, sendo cada uma como o artista bem as definia “suas filhas” nascidas de seu incomensurável talento e capacidade de trabalho. Victor Brecheret é um escultor nas dimensões maiores de valor em criatividade justeza de material, forma e profundidade em singular harmonia entre a profundidade da inspiração e a exteriorização material da sensibilidade.
Daisy Peccinini
professora, historiadora e crítica de arte
Casal de pombos: realizado em Paris, é uma escultura na qual Brecheret, apesar do despojamento das formas incansavelmente procurado, não deseja chegar aos limites da essencialidade das formas geométricas como Brancusi. Faz um caminho próprio, dotando a obra de tonalidades líricas de um percursor da Art Déco.
Na composição das duas aves aconchegadas, de volumes arredondados, predominam as superfícies lisas, quebradas por poucas fissuras precisas dos detalhes. Procura na lisura dos volumes a máxima luminosidade. O uso do material, de textura porosa, a pedra de França permite emanar uma especial e doce radiância. Esta peça participou da primeira exposição individual de Victor Brecheret em São Paulo,
em 1926. D.P.
Brecheret compôs a cabeça da jovem esposa, em São Paulo, captando o caráter juvenil e a expressão alegre. O escultor elabora uma versão pessoal, amorosa sem aplicar os despojamentos formais no tratamento de superfícies lisas e sumamente luminosas dos retratos anteriores. O artista se entrega a uma interpretação naturalista e poética que faz a matéria e a luz vibrar mais dinâmica nos relevos mais numerosos e delicados desta peça que participou da exposição Brecheret, em 1948 na galeria Domus. D.P.
A figura feminina está representada em 3/4 de tronco, com as mãos entrelaçadas à frente. Este gesso faz parte da série de retratos que desde o final da década de 20 lhe são encomendados em Paris, por uma clientela de norte americanas, amateuses de l´art. Estas obras tiveram muito sucesso, como o Retrato da Marquesa Soriano de La Gandara. (Coleção MAB-FAAP).
No retrato da Condessa, ele desenvolve também no gesso-modelo, a pureza e a simplicidade das formas firmemente trabalhadas, com refinamento. Dá-lhes relevo e luminosidade através de as superfícies lisas e fluidas. Este belo código de formas que reúnem qualidades técnicas, marcadas de serena introspecção, que emanam esteticamente e impactam o espectador por sua harmonia clássica.
Elas fazem lembrar os retratos escultóricos do século XV de Francesco Laurana (1425-1502).
Este gesso está preparado para servir de modelo, a fim de que o mestre canteiro (métteur au point) por meio do pantógrafo executasse em mármore. O retrato em mármore faz parte do acervo do Museu da Casa Brasileira. D.P.
Em 1954, Brecheret vai a Europa pela última vez depois de 17 anos e neste mesmo ano executou a decoração de uma pequena capela de fazenda. Para o altar mor realizou o último da série de seus Cristos em terracota. Esta é uma peça singular não só por ter maiores dimensões mas principalmente pela composição, que testemunha a inventiva ilimitada do artista. De fato, os temas sacros que sempre estiveram na sua produção escultórica se intensificam como principal temática na década de 50 entre eles o do Cristo crucificado. Esta imagem sacra, como as anteriores está marcada por incisões quadrangulares e linhas paralelas e pontilhados que o artista explicava como elementos para dar lhe maior força expressiva a figura.
Na década de 50 e na produção de temas sacros o artista associa os grafismos ao seu momento da vida. Sabendo-se cardíaco e, portanto com risco de uma existência abreviada, dados os limitados recursos da época, ele marca com incisões, como expressão de sofrimento. Assim Cristo é marcado na sua dolorosa crucificação. Por outro lado, na imagem se destaca a comovente presença de quatro pequenos anjos, figuras roliças com ecos de querubins barrocos, quase do tamanho de borboletas de asas estendidas, que se inclinam sobre as chagas do crucificado, para amenizar as suas dores. Estes elementos dão uma movimentação inusitada às superfícies e um conteúdo poético inédito à imagem. D.P.
O nu masculino reclinado é um eco das cenas vistas pelo escultor, no Porto senegalês de Dakar, parada obrigatória dos navios na travessia do Atlântico. Impregnaram fortemente a sensibilidade do artista as visões de homens montados em cavalos e zebus, com suas longas pernas e pés pendentes que quase tocavam o chão. Admirava seus tipos atléticos, de ombros largos e cintura estreita, compondo uma geometria natural de trapézio invertido. Neste bronze, Brecheret plasma de forma encantada o biótipo apolíneo africano desta região: o crânio dolicocéfalo, longos braços e pernas com os calcanhares projetados para atrás. Esta figura reclinada, já está dotada pelo escultor de grande força alegórica porque não se trata de retratar uma pessoa exótica, mas de captar os elementos estéticos constantes que caracterizam uma etnia. De fato, trata-se de uma obra precursora da figura africana que colocará em dimensões monumentais no grupo dos bandeirantes, no “Monumento às Bandeiras”; junto com brancos, índios e mamelucos, como símbolo grandioso dos povos formadores da nação brasileira. D.P.