"As costas do modelo começaram a se movimentar formando um sulco diagonal que ia do ombro perto da gola até o cinturão do oficial. Me lembrei depressa que o retratado nunca deve estar cônscio do interesse que desperta, tentava não fitá-lo, mas o tempo acabava, o bonde chegava à Praça e eu continuava na faina. Havia galões de ouro, verde e azuis no boné, a borda toda listadinha, nos ombros torcidinhos de galões dourados e outras coisinhas, nos punhos, credo, eram tantos que não dava mesmo tempo. Como é que eu faço, meu Deus, não consigo. O cabelo pretíssimo, glostorado, ai, preciso misturar o carmim com preto, senão não consigo o ultra preto e agora eu via o rosto meio para mim, todo inquieto, o que não queria, é o nosso moreno paulista, as mãos estou vendo mais morenas, mais um pouco de siena queimada, o rosto mais um nadinha do verde terra no ocre - O bonde parou! Saio ou não saio. Praça Marechal Deodoro! Deram o sinal, o bonde estrepitou e parou, ficou ou não fico... nisto meu modelo se levanta, olha para mim esquisito e vai saindo, olhando sempre para traz e eu atráz da Aí sim! aproveitei para pintar os galões, os vermelhões, os ultramares com verdes de esmeralda!! Eu andava na esquina da praça. A maravilha num instante atravessara a praça e eu atráz encantada. Então, no meio da confusão medonha, vi o quadro perfeito, de pé, parado, no meio do jardim ao lado da estátua. Percebi que me achava no meio de rodas de caminhões e de carros, bicicletas e de gente gritando, um horror, quando vi a visão voltar e dirigir-se em minha direção correndo, no meio da confusão! do tremendo movimento, me agarra pela mão e começa a me puxar, me convencia dizendo:
Por aqui, rodeia o caminhão, não se afoba, passe atráz do auto, abaixe-se mais sobre o paralama e aos poucos o espaço se abria e não sei como foi que me achei sã e salva na calçada do largo da praça. De novo perto das florzinhas do canteiro com ambas as mãos segurando meu rosto, abaixou-se um pouco e disse: É demais de distraída. Notei isto quando entrei no bonde... quase morreu, sabe? Eu não tinha percebido nada. Não vira perigo algum.
O anjo fardado de novo desaparecera assim de repente, no meio do canteiro de florzinhas. O que sim, desconfio, que o anjo fardado era paulista!"
Anita Malfatti